Cultivar a Dissidência: uma nova competência para lideranças em tempos de incerteza
Liderar em ambientes estáveis é desafiador. Liderar em tempos de mudança constante, mais ainda. Mas liderar em contextos de incerteza exponencial, como o que vivemos hoje, exige algo a mais: exige sustentar o desconforto, exercitar a escuta ativa e, acima de tudo, ter disposição para questionar o óbvio. É nesse ponto que entra o conceito de “Farming for Dissent” ou, em tradução livre, “Cultivar a Dissidência”.
Conheci essa abordagem por meio de um artigo assinado por Pascal Finette e Andreas Klinger, especialistas em inovação e tomada de decisão em ambientes complexos. A proposta deles, que vem ganhando espaço em ambientes de alta inovação, parte de uma ideia simples, mas poderosa: as melhores decisões não vêm do consenso fácil, mas da discordância bem estruturada. Ao estimular deliberadamente pontos de vista divergentes, reduzimos nossos pontos cegos e ganhamos clareza em momentos críticos.
Dissidência, nesse contexto, não é conflito gratuito nem resistência passiva. Ela se refere à discordância intencionalmente estimulada, à busca por opiniões diferentes das nossas, à escuta ativa de vozes que pensam fora da curva. É o antídoto ao pensamento de grupo e à bolha de concordância que muitas vezes se forma ao nosso redor, algo especialmente comum entre lideranças seniores.
No setor de meios de pagamento, onde atuo, essa prática tem se mostrado especialmente valiosa. Em um mercado em rápida transformação, em que novas soluções, tecnologias, players e comportamentos surgem a todo momento, tomar decisões baseadas apenas em validações internas pode ser perigosamente limitador. Nessas horas, precisamos da coragem de duvidar, inclusive de nossas próprias premissas.
Ao longo dos anos, desenvolvi uma convicção: a diversidade de ideias é tão essencial quanto a multiplicidade de perfis. E, como líderes, temos o dever de criar estruturas que estimulem isso. Isso significa não apenas aceitar opiniões divergentes, mas sistematicamente buscá-las. Significa premiar quem levanta a mão para fazer uma pergunta difícil, não apenas quem confirma nossa hipótese. Significa tolerar a inquietação natural que vem com a dissidência e usá-la como bússola para decisões melhores.
Na prática, isso se traduz em algumas ações concretas:
- Iniciar discussões estratégicas com uma tese, não como uma verdade absoluta, mas como um ponto de partida a ser testado.
- Convidar diferentes áreas, níveis hierárquicos e perfis cognitivos para contribuir com visões alternativas.
- Criar espaços seguros onde a discordância seja bem-vinda e vista como contribuição, não oposição.
- Documentar premissas antes de tomar decisões e revisá-las à luz de novos dados e argumentos.
Essa abordagem também exige humildade intelectual. É preciso reconhecer que, por mais experientes que sejamos, temos pontos cegos. E que a única maneira de enfrentá-los é com ajuda externa, especialmente daqueles que enxergam o mundo de uma forma diferente da nossa. Não há inovação verdadeira sem a escuta real de quem vive outras experiências.
A dissidência bem cultivada tem o poder de revelar possibilidades que estavam escondidas sob a superfície. Uma pergunta incômoda pode ser o gatilho de uma solução criativa. Um ponto de vista minoritário pode antecipar uma tendência de mercado. Uma crítica construtiva pode evitar um erro estratégico. E, talvez o mais importante: ao valorizar o contraditório, fortalecemos a confiança das equipes, pois mostramos que opiniões são bem-vindas, mesmo quando não são populares.
Cultivar a dissidência não é uma habilidade inata. É uma competência organizacional que pode - e deve - ser desenvolvida. Cabe a nós, promover esse ambiente de confiança, onde pensar diferente não é uma ameaça, mas uma vantagem competitiva.
Esse é um trabalho diário, que começa pela nossa própria postura. Um líder que não se sente ameaçado por opiniões contrárias cria espaço para que outras pessoas também se expressem. Um líder que admite que pode estar errado fortalece a cultura de aprendizado. E, em um mundo que muda mais rápido do que somos capazes de acompanhar, aprender continuamente é a maior vantagem que uma organização pode ter.
As melhores decisões não nascem do consenso imediato. Nascem da coragem de questionar. De duvidar. De debater. Ao promover a dissidência, promovemos também o pensamento crítico, a empatia e a responsabilidade compartilhada.
O futuro da liderança não está em quem tem todas as respostas. Está em quem faz as melhores perguntas e, sobretudo, em quem escuta com abertura real as respostas mais inesperadas.